Raquel Tavares Lebre
(Vice-Presidente da APVA)

Desde que tenho memória sempre senti que não sei Ser Humana e que não pertencia a este mundo. Então desde cedo que sempre procurei como é Ser Humana e os seus comportamentos, porque simplesmente achava que era diferente da norma, e por isso, estava errada e completamente desfasada da realidade.

Foi através da extensa observação e imitação que me adaptei a esta sociedade e sistema normativo: como reagir a determinadas situações, como falar, como estar em cada ocasião, como interagir com pessoas.

Desde pequena que sou considerada como “muito tímida” e não conseguia iniciar uma conversa com ninguém. Cheguei a ter convulsões, sem nunca perder a consciência – epilepsia parcial – por estar no meio de muitas pessoas, mesmo que sejam da família. Este tipo de reação do corpo podemos chamar de “meltdown” que se dá quando há uma intensa sobrecarga no nosso cérebro, tornando-o incapaz de processar informação ou quaisquer outros estímulos, aumentando assim o stress e ansiedade, que por consequência, é exteriorizado através de várias formas, como gritos, choro, agressividade ou convulsões, como acontece comigo.

Na altura, nem eu nem os meus pais, percebíamos o porquê de isto me acontecer, até descobrir em Setembro de 2020 que sou Autista!

Passei anos a estudar, inclusive na Licenciatura e no Mestrado, o comportamento humano, o cérebro, a comunicação, para conseguir entender tudo o que me rodeava – este é um dos meus hiperfocos.

Mesmo assim continuei sem perceber porque continuava a achar-me estranha e com um tipo de pensamento diferente. Pensava que era burra e nunca soube no que é que era boa a fazer, ou o que queria seguir a nível profissional. Isto porque também andei a “camuflar” ou a “mascarar” durante todos estes anos. Este tipo de comportamento é precisamente quando o/a autista observa, analisa e imita o comportamento dos outros para esconder certas dificuldades de socialização, sem ter noção de que realmente o está a fazer, sem qualquer intenção de ser falso/a ou cínico/a, apenas um mecanismo de defesa para ser aceite e se adaptar. 

Ora, quando descobri em 2020 que sou autista, o primeiro sentimento foi de imensa felicidade. Finalmente sei quem sou! Finalmente consigo entender-me. É a minha identidade! No entanto, comecei a analisar toda a minha vida para trás, e senti-me a maior farsa do mundo por me ter sempre escondido com medo de não ser aceite ou ser renegada. Fiz muita coisa para simplesmente agradar aos outros e para parecer bem, visto que era o que via toda a gente a fazer. Foi um processo de autoanálise bastante intenso e doloroso. 

Foi aí que entrei em burnout autista – que é ligeiramente diferente do típico síndrome de burnout causado por razões profissionais. É devido a uma intensa exaustão física, mental e emocional, acompanhada muitas vezes por perda de capacidades em adultos autistas (pode durar meses ou mesmo anos) – agudo – ou devido precisamente ao resultado acumulativo de anos a mascarar e a suprimir quem somos para sermos aceites – crónico.

Ao analisar toda a minha infância e adolescência fui-me apercebendo de certos traços, dentro do espetro autista, que sempre estiveram lá. É um autoconhecimento profundo e uma enorme tomada de consciência! É aqui que começo a sentir que está na hora de ser realmente quem sou e que já não me vou esconder mais. Apenas aos 30, mas agora sei qual é a minha verdade. Sei o porquê de ter hipersensibilidade ao toque e hiposensibilidade ao som, seletividade alimentar, ser bastante literal (não percebendo ironias ou indiretas), tenho ansiedade (embora pensasse que não), alexitmia – dificuldade em distinguir emoções, tanto nossas como as dos outros (é não saber descrever como nos sentimos nem identificar o que os outros sentem), daí antes não ter noção em mim de algumas destas características ou co-morbidades, até porque também não sabia se as outras pessoas se sentiam assim ou não, pelo menos com tanta intensidade, não consigo olhar nos olhos das outras pessoas durante muito tempo, entre outras coisas.

Assim concluí que afinal não estava errada, apenas fora do padrão normativo, pois afinal o que é “ser normal”? 

Hoje sinto-me bem comigo própria, não tenho qualquer preconceito relativamente ao afirmar que sou autista e estou mesmo feliz por finalmente me ter descoberto a mim própria. Por isto mesmo, e por procurar cada vez mais informação sobre o autismo, verifiquei que existem muitos mitos, desinformação e muito pouca investigação, principalmente em adultos, e mulheres. Surgiu então o propósito de criar uma Associação que ajude outros autistas, dando voz aos próprios, e promover a sua inclusão através de vários projetos, para que assim a sociedade em geral nos possa compreender melhor.

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