Parte 1: Don’t Ask, Don’t Tell

Após ser diagnosticada aos 5 anos, a minha professora de educação especial disse à minha mãe: “não diga aos outros que ela tem autismo”. Estas palavras iam remarcar a minha infância, quando comecei a pegar no fardo de esconder a minha identidade. Eu tinha autismo leve, nem é bem autismo verdadeiro de grau severo, como os da televisão. Pelo que era razoável esconder porque com o meu nível de suporte 1 não eram necessárias acomodações, era verbal (uso este termo com algumas reticências) e era funcional. Só tinha algumas inconveniências como dificuldades a socializar, fazia pouco contacto visual e fazia muito stimming, que podiam ser meros sinais de nervosismo e timidez. Basta adicionar à equação os papéis de género que ainda justifica o carácter reservado, típico de meninas. Porque com tanta desinformação, o nosso histórico traumático e o capacitismo que poderia sofrer, mais valia deixar passar a minha condição debaixo do radar.

Parte 2: Patologização do Autismo

Ainda não mencionei a quantidade de comentários capacitistas que eu e a minha mãe levamos, desde muito nova. Desde o mero “ela não tem quase nada” até o “ela tem problemas psicológicos/doença, por isso é que ela tem tratamento especial”. Esses comentários e a perceção do autismo pelos NTs moldaram a minha própria perceção da minha condição, faz-me lembrar a ideia de que há pensamentos introduzidos pelos opressores que colonizam a mente do oprimido, criada por Frantz Fanon, um médico de Martinica, na altura, colonizada pela França. Ou seja, eu sentia-me inferior e disfuncional, em relação aos NTs. O opressor é a sociedade capacitista, que patologiza a nossa identidade, sendo esta perceção baseada numa visão limitada da comunidade médica, que foi amplificada para os meios de comunicação social. Os media moldam a mentalidade coletiva e com a falta de nuance que a nossa condição é apresentada, o cenário não tem sido muito favorável para nós autistas.

Parte 3: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”

O modelo biomédico implica que com a existência de uma patologia tem de haver tratamento ou reabilitação da mesma. Da minha experiência, os profissionais de saúde tendem a ver autismo como uma patologia, devido às razões que mencionei na parte 2. Também, é pervasiva esta ideia neoliberal de que os autistas de nível de suporte 1 são funcionais, logo aptos para o mercado de trabalho, mesmo que aliene as suas necessidades específicas. Alguns até são uns prodígios ou sobredotados, ainda melhor para a Google. Os que possuem maior nível de suporte são logo relegados a instituições ou a trabalhos precários ou desemprego. Existe um certo guilt tripping na medida em que deviam ter sido alvo de terapias para tornarem-se mais funcionais para um sistema que nem os inclui. Hoje, levei com um comentário de uma médica que eu devia, mas é ter ido para uma área com menos interação social (Análises Clínicas), dado a estar a ter dificuldades no meu estágio (o problema que podia ser atenuado se mostrassem-se mais disponíveis para fazerem adaptações no meu estágio). Ainda rematou que não devia ter revelado o meu diagnóstico ao corpo docente: “Também não chegas a um grupo de pessoas e dizes que tens bócio. Então porque é que dizes que tens autismo?”. Para além de ser uma fraca comparação, fez reviver o meu trauma causado por capacitismo. Desvalidou-me. E não é só aquela médica, é uma classe de profissionais de saúde, que não se encontram preparados para lidar com as especificidades das diversas deficiências e que veem o autismo exclusivamente numa lente médica. É tentador esconder a minha deficiência invisível, como sempre fizera, para não estar a sempre a reviver este trauma, a ser constantemente desvalidada e a reforçar o meu capacitismo internalizado. Afinal, já entrei neste inferno, é só ajustar-me à temperatura e aos seres que lá vivem. Mesmo tendo hipersensibilidade à temperatura.

Parte 4: Precisa-se de mais tempero na sopa

O modelo de um profissional de saúde é de uma pessoa neurotípica, sem deficiência. Não esperam profissionais de saúde autistas (assumidos), sendo eles relegados a áreas de IT ou do género. E isto é um problema. Profissionais de saúde com deficiências tendem a ser mais empáticas com pacientes com deficiências. Eu ando numa psicóloga com uma deficiência motora, e foi a primeira profissional a validar a minha deficiência. Temos de ter em conta que as PCD tendem a ser alvo de capacitismo médico, pelo que para atenuar nesta opressão, devia-se impulsionar a inclusão de PCD no ramo da saúde e abolir o ideal de um profissional de saúde. Isto é atingível com o fornecimento de acomodações na instituição de ensino e no local de trabalho. Eu espero que com a inclusão de profissionais de saúde autistas, possa ser o primeiro passo para abolir a patologização da nossa condição, mitigando a necessidade de a esconder, ao “normalizá-la”.

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