Da pressão à dor 

(preciso de algo que me toque profundamente)

  Nós que passamos por todas estas vivências (depressão, pensamentos intrusivos, autoagressão, automutilação etc) estamos aqui hoje também, em pleno Setembro Amarelo, para tirar da escuridão. Porque, em pleno séc. XXI, nada devia ser tabu, e esta é a minha história. Pode ser a de outros ou não (para já é só minha).

Foi por volta dos meus doze anos que eu comecei a recorrer à automutilação para conseguir lidar com todo o ambiente escolar… Eu ainda não sabia que era autista. Mas já sabia que tudo aquilo era demais para mim, cada vez mais. Cada vez as coisas mudavam mais e com elas aumentava a confusão. De repente, “anda brincar” não era mais uma frase aceitável porque eu “era grande” (apesar de não ter mais frases para dizer); ser honesto e autêntico não era mais “engraçado”, mas certamente um propositado ato de malvadez ou má educação; mentir e dizer asneiras era giro para se ser parte de um grupo, mas não à frente dos pais (apesar de não conseguir fazê-lo nunca); e eu caminhava com muito cuidado sobre um metafórico gelo fino, que nunca sabia quando poderia quebrar. 

  Aos 13 anos já não conseguia ir fazer um teste sem uma lâmina no bolso que usava antes e depois sem saber bem porquê. O sofrimento era tanto que não conseguia parar. De facto, com toda a pressão, os testes são para mim um sufoco talvez um pouco maior do que o normal. Duas semanas antes da data prevista já o meu mundo pára, a ansiedade ataca-me noite e dia, e o tempo avança depressa demais. Quero estudar, mas o meu cérebro não me deixa: abro os livros e as palavras não me dizem nada, como se, de repente, estivessem vazias de significado. Ou, pelo menos, do significado que é suposto. Enquanto me debato com o texto, o quarto onde estudo ganha cor, as formas ganham vida, mais e mais luz e quando dou conta estou a viajar algures no tempo e espaço, a perguntar de mim para mim: “Hmm, se abrisse a tampa do piano e colocasse este lápis entre os martelos, será que o som ficaria mais seco? E uma peça só composta com martelos a bater nos lápis- a serenata escolar- isso é que era um teste! […] Bolas, não era isto que eu estava a estudar, calma…” 

  Leio várias vezes para conseguir perceber uma só frase com atenção e chego a demorar uma hora a ler cada página (sim, eu contei), entre as inúmeras tentativas de afastar tanto distrações como hiperfocos (aqueles assuntos que são os nossos “interesses restritos”, “obsessivos” ou especiais). A ansiedade de ver o tempo a passar sem grandes avanços no estudo obriga-me a cessar, durante essas duas semanas antes dos testes, qualquer contacto com os meus hiperfocos, coisa que, para alguém autista, é o inferno, porque o nosso cérebro está formatado para seguir aquele determinado assunto. Falem do que falarem, o mais provável é que o meu cérebro, das duas uma: ou o relaciona imediatamente com um dos meus tópicos de interesse e o foco é mudado para isso, ou isso “entra e sai” sem ser processado e é preciso um grande esforço para responder. Quanto mais fugimos, mais parece que o nosso cérebro quer ir para lá. Mas não posso, não há tempo, e o desespero acumula-se… Consigo compará-lo a  uma pessoa neurotípica (não-autista) com desejo a fazer votos de celibato de repente: muito complicado, não é?

   Quando chega o dito momento do teste, ele é em si, não apenas uma prova de conhecimentos, mas sobretudo de resistência. Nos trabalhos nós podemos ir vendo o que fazemos em vários dias, podemos ir tirando dúvidas, alterando, pensando, aprendendo… Mas nos testes, em primeiro lugar, nada é certo ou garantido porque, por mais que estude, é difícil saber aquilo que realmente sei ou se saberei aplicar especificamente às situações que o professor vai expôr ou perguntar (que são do mais imprevisível que há); tal como é difícil saber (em segundo lugar) aquilo de que me vou lembrar ao certo no exato momento do teste que pode ser influenciado por vários fatores (disposição, barulho, problemas…). Previsibilidade: zero.

  Após duas semanas de cansaço acumulado daquilo a que eu gosto de chamar “tortura medieval auto-infligida”, para conseguir reter algo que dê para “vomitar” no teste sem grande utilidade, lá estou eu. Cheguei uma hora mais cedo porque já não aguentava estar mais em casa, e só cheguei uma hora mais cedo porque não conseguia sair de casa (a ansiedade social dos pensamentos aterradores de sair à rua, de ter que interagir com pessoas sem saber bem o que tenho que dizer ou o que vou encontrar pelo caminho são, muitas vezes, paralisantes ao ponto de não conseguir sequer abrir a porta). 

  Mas estou ali. Mais um desafio. Sentei-me na cadeira e os meus colegas estão finalmente a chegar. Ligam-se as luzes, começam os burburinhos… Ainda não tenho o teste à minha frente mas, por detrás daquele corpo aparentemente estável na cadeira, o meu cérebro já está:

– “a, ante, após, até, com contra de desde em entre para perante por segundo sem sob sobre trás, a ante após…Fá, dó, sol, ré lá mi si mi lá ré sol dó fádósolrélámisimilárésoldó…” 

  E sobrepõe-se: 

– “porque é que ninguém se cala, já não posso com estas luzes, onde é que está um buraco para eu me enfiar?” “Concentra-te, concentra-te, concentra-te, concentra-te…” [todo eu sou um looping, um peão que, de tanto girar, fica ilusoriamente imóvel por certo tempo…]

  Mas a sala está cada vez mais branca, e os burburinhos cada vez mais altos, e ainda por cima o professor hoje decidiu trazer perfume…!!

  E ainda perguntam porque é que fazemos certos movimentos com o corpo, com as mãos ou com os braços (o chamado stimming)… O que fariam vocês se fossem atacados desta maneira? Desatar à estalada ou a bater com a cabeça na parede não são alternativas mais eficazes, acreditem, já tentei….

  O teste acaba, finalmente, e finalmente fico exausto. Saio da sala. Ainda são demasiados os pensamentos e não consigo processar mais nada. São tantos que se transformaram numa dor real, familiar, que eu posso sentir, mas não posso ver: uma espécie de aperto ou sufoco que não sei bem de onde vem (não fizesse parte do meu autismo esta dificuldade em identificar e lidar com as emoções). Tenho que parar de alguma maneira a dor, os pensamentos… E, mais uma vez, caio no único comportamento forte o suficiente para aliviar um pouco toda esta pressão. 

  Não me orgulho. A automutilação é um assunto sério. Torna-se um vício que eu diria ser tão complicado como a droga. São comportamentos que ainda hoje me assombram. Que eu tento largar e não consigo… Nos quais eu quero cair o mínimo possível, porque me deixam marcas para a vida, mas é tão difícil controlar. Agora estou “limpo”, amanhã quem sabe… E cada vez menos sei se vale a pena o sofrimento. Fazer sentido, certamente não fez, ainda não faz e, se há alternativas como utilizar trabalhos em vez de testes, ou menos matéria e salas separadas, luzes mais fracas, fones, óculos escuros etc, etc… Porque sofremos? Eu sei que não sou o único.

Max Madeira

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